
Bom, tenho que falar um pouco sobre o meu trabalho no Japão. Acho relativamente fácil falar disso, e posso afirmar que muitos imigrantes diriam o mesmo que eu. Pensando bem não tenho tanta certeza disso, visto que muitos já estão acostumados ao sistema de trabalho japonês. Posso afirmar que o trabalhador aqui vive como os trabalhadores ingleses, em meados do século XVIII.
Naquela época os empresários impunham duras condições de trabalho aos operários, sem aumentar os salários para assim aumentar a produção e garantir uma margem de lucro crescente. A disciplina era rigorosa e as condições de trabalho nem sempre ofereciam segurança. Em algumas fábricas a jornada ultrapassava 15 horas, os descansos e férias não eram cumpridos e mulheres e crianças não tinham tratamento diferenciado. Esse quadro é o que vejo todos os dias aqui na terra do Sol nascente. Isso não está em livros, jornais ou na conversa do dia a dia. Isso acontece com meus amigos, mas eles acabam engolindo sapos, pois precisam do trabalho. Bom, quero destacar aqui algumas situações do trabalho cotidiano:
- alojamento ou apto em nome da empreiteira, como os conhecidos gatos no norte do Brasil. O aluguel desse alojamento é descontado do salário do proletário e muitas vezes é cobrado um valor acima do preço de mercado.
- doze ou mais horas de jornada diária de trabalho. Oito obrigatórias e as demais por coesão psicológica. Se não trabalha perde o emprego, se perde o emprego perde a moradia
- material de trabalho descontado do salário: uniformes, botas, bones com o logotipo da empresa, etc. O trabalhador é obrigado a usar o uniforme, portanto, obrigado a comprar da empreiteira
- menores fazendo jornada de 12 a 14 horas diárias
- homens e mulheres carregando peso acima dos 25 kg
- mulheres ganhando salários invariavelmente menores, pelo mesmo trabalho dos homens
- pessoas trabalhando sem adicional de periculosidade ou insalubridade. Eu sou uma delas.
- trabalhadores fazendo jornada de trabalho de 12 horas com somente um intervalo para almoço.
Os nomes são fictícios, pra garantir a privacidade dos citados.
Bom, quero descrever aqui o primeiro dia de trabalho de um amigo meu, o Roboaldo. Começou a jornada de trabalho às 10 horas da manhã e parou pra almoçar as 11 horas da noite. Isso mesmo senhoras e senhores, 23 horas! Ah, vale lembrar que parou pq pediu, pois não estava aguentando continuar devido ao cansaço e fome. Mas tudo isso é normal por aqui, afinal de contas, você trabalha porque quer.
Roberbill foi ameaçado por um chefe que se dizia da yakusa, a máfia japonesa. Foi ameaçado pq segundo o mesmo não cumpria as exigências do trabalho. Exigências simples, como ter somente um intervalo durante as 12 horas trabalhadas. O que tem de mal em ameaçar um trabalhador?
Robervaldo foi impedido de visitar sua esposa que acabara de dar a luz. -Vá visitar seu filho e esposa depois do trabalho - disseram seus chefes. Trabalho por aqui vem muito antes da família.
Um dia trabalhei 22 horas. Pedi uma refeição, afinal de contas tinha devorado minha marmita nas 12 primeiras horas trabalhadas. Não me deram a refeição combinada. No dia seguinte procurei o superior do meu chefe e, ao ser chamado, este justificou a não refeição alegando que achou que eu estivesse brincando quando pedi a tal refeição. Imbecil...
E por aí vai, poderia continuar, mas seriam histórias semelhantes.
Hoje trabalho soldando rodas de automóveis, caminhões, empilhadeiras, carros de combate etc. Os chefes gostam de mim, afinal de contas tenho boa saúde e trabalho nos finais de semana qdo me pedem. Nunca sei qto produzo, mas um dia resolvi contar: Soldei 450 rodas numa jornada de trabalho. Depois de 13 horas trabalhadas e 450 rodas soldadas tenho a impressão que não produzi nada, pelo menos nada de realmente importante pra humanidade. Me pergunto: pra que tanta roda? todos sabem a resposta: pros países ricos e seus carros descartáveis. Quanta energia gasta. Quanto plástico e derivados de petróleo. Qto metal. E tudo isso pra que um cidadão rico utilize um veículo por no máximo 4 anos. bom, mas isso não é problema meu, afinal de contas sou apenas um proletariado. Será que não é problema meu? Ou seu?
Já falei demais, sei que todos estão entediados... vou parar de falar besteiras e problemas que nao são de vcs, afinal isso não é um curso de psicologia ou psiquiatria. Existem profissionais que querem ouvir os meus problemas. Vou falar coisas importantes, responder as 7 perguntas que me foram feitas:
- trabalho de 11 a 13 horas por dia.
- faço de 2,5 a 4 horas extras por dia
- na fábrica trabalho soldando vários tipos de rodas. Solda do tipo arco. Solda mig e solda elétrica com bastão.
- meu tempo é dividido em trabalho e descanso... o descanso abrange dormir, comer e lazer.
- teve uma vez que trabalhei em dois empregos. Uma história realmente longa pra ser contada nesse depoimento. Uma história em que o empregador tenta coagir um trabalhador a abandonar seu emprego. O que eles não esperavam é que esse proletário era totalmente pirado e não abandonou o trabalho. Resumindo isso resultou que eu entrava numa fábrica as 9 da noite e saia as 8 da manhã. Pedalava por 40 min até a outra fábrica e ficava por lá até as 5 da tarde. Voltava pedalando e tinha 3 horas pra dormir, tomar banho e me alimentar. Essa foi minha rotina por 2 meses e não preciso dizer que não fiz bem nenhuma das três opções.
Falando em rotina, vcs me perguntam: qual é sua rotina? difícil pergunta... Minha rotina? ... realmente fujo todos os dias da rotina. Acredito que ela mata a alma. Mas vou tentar resumir.
- todos os dias acordo, me alimento e trabalho. depois disso começa meu dia ( ou noite ).
- estou editando um filme documentário que fiz no Brasil antes de zarpar pra essa ilha. Se chama Os filhos da mãe gentil e se trata de uma viagem solo de motocicleta pelo centro oeste,nordeste e sudeste do Brasil. Uma discreta visão de um motociclista em relação aos brasileiros...
- as vezes saio do trampo nos finais de tarde de sábado e vou pra montanha praticar snowboard. Depois de um dia de trampo pesado no Japão nada melhor do que passar a noite toda praticando snowboard com amigos malucos como eu. Entramos na estação de esqui às 10h da noite e saimos às 7:45 da matina... exaltos e descansados...
- aos domingos vou a igreja agradecer a Deus pelo trabalho e pelo lazer.
- as vezes vou a praia de bicicleta, afinal fica a apenas 1h30 de pedalada....
poderia continuar falando do meu dia a dia pós trabalho por aqui, mas isso nao importa, o que importa é o trabalho.
valeu a pena vir ao Japao??? - pode ser a indagação de alguns de vocês. Como disse nosso amigo português, posso responder com toda a certeza : Tudo vale a pena se a alma não é pequena!